Fernando Pessoa não evocava fantasmas, criava-os: segundo o jargão gnóstico, eram a sua “emanação”. A princípio móvel, implacável e generoso, anónimo, imortal na sua infinitude mais melancólica, Pessoa é o deus abúlico de quem vêm muitos heterónimos; é ele que está emparedado, o único que se espalha em legião. Na Cabalá seria “Keter”, o nada divino, incolor, transcendente; o Retrato de Fernando Pessoa de José de Almada-Negreiros distingue a sua elegância patética e plástica, as mãos de um alquimista, o olhar inclinado à severidade – e, portanto, à mais sombria compaixão -, de uma violência incerta: toma inspiração burocrática para discernir o caos.
“Pessoa é uma má consciência plural e monstruosa: a minha, a nossa, a sua, a de todos os homens de boa vontade, qualquer que seja a sua boa vontade. Pessoa é um grito de dor e um balido, uma canção muito aguda e uma careta, uma unha correndo no quadro-negro onde um bom professor quis traçar a prova tranquilizadora de seu teorema”, escreveu Antonio Tabucchi, inspirado no fundo- surge, em Uma multidão (Adelphi, 1979), o livro que fez de Pessoa o santo da edição de hoje, um fenómeno pop, o guru dos nossos esoterismos quotidianos, como um café com leite. Entre outras coisas, argumentou Tabucchi, Pessoa se reconhece “ao evitar o signo que se afirma, ao repudiar a prevalência”. Em suma, Pessoa não o encadeia num hábito, num tom, num adjectivo: os heterónimos, se não cruéis, existem para proteger o criador de qualquer incursão exegética, de qualquer fé estúpida, do solo dos académicos.
Entre a falange dos heterônimos, Alexandre Search, nascido em 13 de junho de 1888 em Lisboa, sob o nome de Pessoa, provavelmente sul-africano, autor de textos com títulos claustrofóbicos – O Desordem Mental de Jesus, Delírio, Agonia – e “um pacto com Satanás “, parece prefigurar o fatídico encontro com a “Besta”, o “666”, o esoterista Aleister Crowley. Quase tudo se sabe sobre o encontro, que aconteceu em 2 de setembro de 1930 – graças a um livro, The Mouth of Hell, editado por Marco Pasi para o editor Federico Tozzi em 2018. Pessoa havia escrito para a editora londrina de Crowley, apontando um erro em seu horóscopo; Crowley – expulso de Cefalù sete anos antes -, maravilhado com a inteligência astronômica de Pessoa, quis conhecer o discípulo português. Em Lisboa, desembarca com uma rapariga de proverbial beleza, Hanni Larissa Jaeger, que passado algum tempo preferiu deixá-lo. Aqui a relação iniciática assume a aparência de capricho, de uma cena carnavalesca: Crowley, de facto, encena um suicídio, junto às falésias da Boca do Inferno em Cascais, talvez para reconquistar a jovem, certamente para reactivar a sua fama, ligeiramente no desarmamento. Pessoa, à frente da polícia local, serve-lhe de ombro, o assunto sobe, a imprensa inflama, Crowley obtém o efeito esperado. Entretanto, partiu para Berlim, onde é acompanhado por outra mulher, Bertha Busch. Fofoca mística.
No entanto, o interesse de Pessoa pelo ocultismo remonta a muitos anos: em 1915 traduziu textos de Helena Blavatsky, fundadora da Sociedade Teosófica, e ficou impressionado. Cinco anos depois, a Ophélia Queiroz, escreveu “O meu destino… está cada vez mais subordinado à obediência aos Mestres que não permitem e não perdoam”. Na famosa nota autobiográfica escrita em 30 de março de 1935, oito meses antes de sua morte, Pessoa afirma que foi “iniciado, por comunicação direta de mestre a discípulo” (por Crowley?), a ser “um defensor de um nacionalismo místico” , declarando-se “fiel à tradição secreta do cristianismo”. No ano anterior, ele próprio imprimira a Mensagem, o único livro em verso, em português, publicado em vida. De forma lírica, Pessoa resume a sua fé no “Sebastianismo” e no Quinto Império, ápice do destino português.
A natureza messiânica dá aos poemas uma urgência dourada: “Não sei a hora, mas sei que a hora é. / Embora Deus a demore e a alma a chame de mistério”. Com este livro, Pessoa participou no prémio anunciado pelo Secretariado de Propaganda Nacional: foi preferido o trabalho menos exigente de um padre, Vasco Reis, que, querendo desabafar no sonho, parece ser uma criatura concebida no local de Dom Fernando, talvez primo de Ricardo Reis – monarquista, natural do Porto, fanático por Horácio, exilou-se no Brasil.
Entre os poemas esotéricos de Pessoa – editados por Francesco Zambon; anteriormente Guanda, 2000, agora publicado por Luni, pp. 160, 20 euros, a ler juntamente com as Páginas Esotéricas de Pessoa impressas por Adelphi em 1997 e com a colecção Política e Profecia, editada por Brunello De Cusatis, Bietti, 2018 – as mais belas não são as voluptuosamente gnósticas (On le tombeau de Christian RonsenKreutz, para dizer, com dísticos sapienciais como este: “Deus é o Homem de outro Deus maior: / Supremo Adão, Ele também havia caído”), mas aqueles em que o poeta vê a escuridão entre os redemoinhos do jardim de rosas sob a casa, levanta cuidadosamente o filme que silencia o mundo, revelando seu mistério: “A morte é a curva da estrada, / morrer é só não ser visto… // A terra é feita de céu./ A mentira não tem ninho.” A revelação é doméstica, aqui, exata: o enigma, para resolvê-lo, requer arte, até ternura.
Parece, pois, que para Pessoa o esoterismo não tem os matizes da moda, da exclusividade esnobe de um clube inglês – como é o caso do alucinado William Butler Yeats -; A Maçonaria é uma missão, a gnose é uma queda no setor privado: felizmente, faltam liturgia kitsch, conversa sobrenatural, o rito banal altoborghesi. Em Pessoa impera a ingenuidade, o reino da maravilha, um tabernáculo de mel na garganta. Basicamente, o Livro do Desassossego é a história de uma alma perdida, uma espécie de evangelho gnóstico, mas em negativo: “Como Diógenes de Alexandre, só pedi à vida que não levasse o sol. Eu tinha desejos, mas me foi negada a razão de tê-los… Deus me conceda que não falte o enigma de viver”.
Por outro lado, se Bernardo Soares era um modesto “assistente de contabilidade” que continha universos noturnos, Ricardo Reis ostentava uma espécie de epicurismo dourado, Álvaro de Campos nasceu dândi, futurista, anti-burguês; Antnio Mora era “um paranoico” obcecado pelo Prometeu acorrentado de Esquilo; O neopaganismo não é estranho aos interesses de Alberto Caeiro, um poeta “estrangeiro com laços afetivos e sentimentais” de olhos obviamente azuis. Como relegar Pessoa, criador de nevoeiros, extremista da evasão, a um pensamento, um credo, uma pousada, uma demissão?
Para os heterónimos de Pessoa não há inferno, o juízo final não tem sentido: são absolvidos por excesso do absoluto.
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